Anotações retiradas da fala de Ajahn Jayasaro sobre sofrimento e kamma, que pode ser escutada (em inglês) aqui.
O ensinamento central de todas as tradições budistas é sobre as 4 nobre verdades. O sofrimento, ou dukkha, é a primeira das 4 verdades. No oeste existem muitas más interpretações do budismo, e a ênfase no sofrimento ou dukkha como sendo o ensinamento central tem levado muitas pessoas a dizer que o budismo é um ensinamento muito pessimista.
A tradução de dukkha é difícil e “sofrimento” é talvez a tradução menos pior, ou a que traz menos sofrimento aos tradutores. Eu prefiro usar a palavra pali dukkha, e a razão é porque a palavra “sofrimento” é geralmente compreendida de forma distorcida e limitada em relação ao que o budismo está se referindo.
Minha interpretação do significado de dukkha, em resumo é: aquilo que não é nibbana. Em alguns livros podemos ver que o budismo diz que “tudo é dukkha”, mas essa é uma afirmação meio vazia. Ela só tem sentido quando existe algo que não é dukkha — e o que não é dukkha é nibbana. E estamos todos aqui hoje é porque existe um caminho para fora de dukkha.
Uma segunda forma de ver é que dukkha é a falta de felicidade verdadeira. Assim, nibbana é a felicidade verdadeira. Buddha diz, em sua próprias palavras, nibbana sukham saranam, ou seja, nibbana é a felicidade suprema. Isso traz luz à muitos ensinamentos.
Escutamos alguns dizeres como “a pessoa pensa que é feliz mas não é realmente feliz”, ou então que “até a felicidade é sofrimento”. Então qual é a diferença entre ser feliz e ser realmente feliz? Se dukkha é a falta de felicidade verdadeira, então podemos perguntar se existe a felicidade verdadeira. A primeira nobre verdade diz que sim, existe. E então, existe um caminho para a felicidade verdadeira? A terceira nobre verdade diz que sim.
A falta de felicidade verdadeira, de nibbana, é um condicionamento. Não é uma maldição ou algo que tenhamos herdado ou algo que está nas estrelas. É resultado da falta de entendimento sobre a forma como as coisas são. Estou falando das 4 nobres verdades aqui, e então a nossa experiência da vida é caracterizada pela falta de felicidade verdadeira e durável, e isso acontece por falta de compreensão, que se manifesta como apego. Essa situação não é inevitável, fixa ou algo que tenhamos que aceitar e nos conformar. Mas sim, é algo que podemos transcender e atingir a verdadeira felicidade através do nobre caminho óctuplo.
O buddha partiu da condição humana, da forma como as coisas são, dos aspectos que são imediatamente compreensíveis. Não começou com um sistema metafísico avançado e então pediu para seus seguidores encaixarem sua experiência nela. Ele não disse como você deve ser, porque ele percebeu que ao começar assim a maioria das pessoas se sentiria culpada. Mas o buddha começou com a forma que você está agora, e porque é assim, e se tem que ser assim, e se não tem o que você vai fazer sobre isso. Então é um ensinamento muito prático. É como se o buddha reconhecesse uma grande extensão de água e apontasse para a praia, e então construísse uma ponte para chegar até lá. Não foi o contrário, ele não construiu a ponte e depois tentou encontrar água para colocar embaixo dela.
A fé que precisamos enquanto budistas é diferente da fé necessária para seguidores de religiões teístas. E é importante distinguir budismo de outros ensinamentos sem apontar qual está certo ou é melhor, mas podemos apontar por que somos felizes sendo budistas e por que reconhecemos que esse é o caminho mais frutífero e benéfico para nós. Eu divido as religiões em dois grupos. Primeiro vem aquelas que cresceram no oriente médio, as quais podemos reconhecer como sistemas de crença. A fé, crença, é a virtude central nesses sistemas, e por isso religiões também são referidas atualmente como “fés”. E o budismo não é um sistema de crenças, é um tipo diferente, uma família diferente, uma espécie diferente de religião. Não é um sistema de crenças, mas um sistema de educação. E nesse sistema, a fé tem um certo papel a cumprir, mas é sempre mediada por sabedoria, pela faculdade da crítica. A palavra pali ehipassiko — venha e veja — permite que coloquemos estes ensinamentos em dúvida, e precisamos fazer isso. Então a fé tem o papel de esclarecer objetivos e o nosso caminho, e nos direcionar para o esforço. A fé na iluminação do buddha é a fé na iluminação de um ser muito especial há 2.500 anos, mas a implicação disso é a fé em algo que não temos como provar, que é na capacidade de um ser humano de se iluminar, ou de transcender dukkha, ou seja, atingir a felicidade verdadeira do nibbana. A fé na iluminação do buddha é a fé na capacidade humana da iluminação.
O passo crucial que segue é que temos fé na nossa própria capacidade de nos iluminar. Os budistas acreditam na capacidade de abandonar aquilo que não é saudável e de desenvolver aquilo que é saudável. Acreditamos na nossa própria capacidade de purificar nossa mente, de transcender dukkha, de ter a consciência de nibbana. Mesmo se nessa vida não chegarmos lá, é a nossa tarefa, nossa responsabilidade, motivação, orientação da vida , aquilo que dá sentido a cada dia, cada hora, cada minuto que temos: o movimento em direção a nibbana.
Uma vez que tenhamos o objetivo final claro, a transcendência de dukkha e a consciência de nibbana, o que significa a felicidade verdadeira final, ou seja, a falta completa de avidez, aversão e ilusão, então podemos começar a pensar no caminho do meio. Qual é o caminho do meio? É a prática ótima a cada momento, estando no monastério, em casa ou no carro, que nos conduz através do corpo, fala e mente, que é mais efetiva em reduzir as contaminações da avidez, aversão e ilusão, e promover as qualidades positivas de generosidade, compaixão e sabedoria. Esse é o caminho do meio para nós naquele momento naquela hora.
Então dukkha, como uma nobre verdade, pode ser transcendida, deveria ser transcendida por mim, deve ser transcendida por mim. Este é o tipo de progressão que cada um segue em sua contemplação. Não é uma filósofia, um simples acúmulo de ideias sofisticadas e inspiradoras. É sobre nossas vidas aqui e agora. E podemos ver muito claramente no momento presente que altos ideais e crença em coisas nobres não é suficiente. As pessoas estão fazendo coisas terríveis todos os dias para outras pessoas, em nome de coisas nobres. Então não é no que você acredita que conta, mas o que você faz, o que você faz com seu corpo, com sua fala, e com sua mente. Em outras palavras, é o seu kamma.
Kamma é ação de corpo, fala e mente, caracterizada pela intenção. O coração de kamma é a ação intencional. Quando inspiradas por contaminações de avidez, aversão e ilusão são kamma ruim, e quando inspiradas por generosidade, bondade, compaixão, sabedoria, são kamma bom. O desafio a cada momento é então como criar o mínimo possível de kamma ruim e o máximo possível de kamma bom. É o resumo desse ensinamento complexo em desafios muito simples e nossa vida. Não tenham medo da simplicidade, não sintam que quanto mais complexo um argumento for melhor ele é pra você, ou mais benefício trará. Algumas vezes podemos pegar livros de Dhamma e pensar “nossa, como isso é profundo”, porque não entendo nada disso. E pensamos que algo como “não crie kamma ruim, crie kamma bom” é coisa de crianças, eu não estudei tanto budismo pra isso. Mas o que precisamos é a humildade de ser um estudante novato a cada dia, e nunca ser um expert.
Meus estudantes na Tailândia sempre me ouvem contar uma anedota sobre Albert Einstein. Perto do fim da sua vida, o maior e mais famoso cientista do planeta, mais imediatamente reconhecível, com seu cabelão e bigode, foi a um seminário, e nos bastidores alguém perguntou: “quem é você?”. Ao que ele respondeu: “sou um estudante de física”. Ao invés de responder “você não sabe quem eu sou?”, ou “tenho dois prêmios Nobel”, ou “sou o cientista mais famoso do mundo”, ou “no dia de ontem eu esqueci mais física do que você já aprendeu em toda sua vida”, o que ele respondeu foi “sou um estudante de física”. Essa é a atitude que eu sugiro na prática do Dhamma, nunca seja um expert em Dhamma. Não vá ao outro lado e pense que você é estúpido, porque isso também é um tipo de orgulho. Existem tipos diferentes de orgulho e presunção, algumas pessoas se orgulham de ser especiais e serem muitoa boas em muitas coisas, outras pessoas se orgulham de serem desanimadas, é um tipo muito perverso de orgulho. Não sei como é na Malásia, mas quando eu estava na escola você tinha que estar no topo ou no fundo do poço, o pior que podia acontecer era ser mediano.
Estamos interessados nesse desafio bem básico de abandonar o que não é saudável e desenvolver o que é saudável. O buddha dizia que um monge na linhagem nobre da sangha é um monge que encontra muita felicidade em abandonar aquilo que não é saudável e desenvolver aquilo que é saudável.